Uma descriçao da cidade de Murcia, vista pelos olhos de uma lisboeta que aqui vive há um ano.
Vamos pôr as coisas desta forma: Lisboa é uma cidade lindíssima, onde neste momento eu creio que nao se pode viver. Assim, Murcia é uma cidade muito bonita onde se pode viver, e bem.
Temos um Bairro Alto. Chama-se bairro de Santa Eulália, e tem desde tascas a lojas alternativas e indies. Uma das suas principias diferentas em relaçao ao Bairro Alto propriamente dito, por exemplo, é o facto de ser completamente plano. Aqui, nao há colinas. E a cidade é bastante mais pequena no seu centro do que Lisboa. No entanto, existe uma maior concentraçao de serviços e de comércio, e de pessoas também. Além de ser uma cidade mais segura, as ruas de Murcia nunca estao vazias. E, sendo um reflexo da Espanha actual, é uma cidade multicultural; neste momento, Espanha está atrás dos Estados Unidos como país do mundo que mais imigrantes acolhe e isso vê-se um pouco por todo o lado; desde os resorts de golf que estao a abarrotar de ingleses, até aos grupos de amigos que se encontram nos cafés, sendo que em 5 pessoas, apenas uma é espanhola. Ingleses, escoceses, franceses, alemaes, holandeses, polacos, brasileiros, escandinavos em geral e, assim de repente, um portuguesito. Ou dois. Somos pouquitos, mas quero pensar que estamos bem representados…:-P
Fora da zona urbana de Murcia, entramos no campo, ou como se diz aqui, na huerta. Começam a aparecer pueblos pequenos, pobres, daqueles que sao atravessados por uma estrada, e que antes que se possa ler o nome da aldeia na placa, já se saiu de lá. Aí sim, saímos de “Lisboa” e entramos na provincia do tipo interior de Portugal. Mas com um aroma flamenco, o que nao deixa de ser, na sua esencia, um pouco assustador. E desolador também.
Surge o contraste quando se conhecem os resorts de golf que rebentam pela regiao como cogumelos, e a costa de Murcia, com a superpovoada
Huerta e resorts de golf de luxo…
A vida corre fácil e sem grandes sobresaltos.
Os portugueses aqui sao muito bem recebidos, porque em geral existe um fascínio por Lisboa e pelo Porto. Todos os murcianos que conheço já visitaram pelo menos uma vez, ou querem visitar, qualquer uma destas cidades. É a tal ponto que temos já feito um roteiro no computador sobre Lisboa e zona de Cascais/Sintra, para enviar a quem nos pergunta o que há para ver na capital. Na pior das hipóteses, nao nos ligam, o que também é bom; antes isso do que sermos maltratados, como por vezes acontece nas zonas fronteiriças.
O custo de vida é relativamente baixo, e embora os ordenados sejam considerados os mais baixos de Espanha, Murcia é a regiao do país onde as pessoas mais satisfeitas se sentem, porque existe realmente uma grande qualidade de vida. A maior parte das ruas sao peatonais, ou semi-peatonais; existe uma grande actividade de rua, seja com cafés e lojas, seja com o facto de simplesmente se poder passear traquilamente; os copos sao baratos e há uma grande variedade de bares e de discotecas, às quais se pode ir a pé; o desemprego é baixo; planeia-se fazer estradas para bicicletas, devido ao bom clima e ao facto de a cidade ser totalmente plana; as pessoas sao simpáticas e acolhedoras…
Tudo isto nao implica, todavia, que tudo seja perfecto.
O típico murciano é uma pessoa conversadora e aberta, mas com alguna frequência, encontra-se um personagem com a qual pode ser um bocado complicado lidar: el huertano.
(Tom de voz David Attenborough)
O “huertano” é uma figura que remonta aos tempos
Em geral, a pronúncia murciana é, em muitos casos, muito marcada e torna a compreensao do castelhano difícil. Tomemos como exemplo a seguinte frase paradigmática: Has comido ya?, que quer dizer em português “Já comeste?”. A pronúncia castelhana para esta frase é: Ás cómidô iá.
A pronúncia murciana é: Ácomioiá.
Imaginemos um cenário em que, num local de trabalho, o responsável é uma personagem do tipo “huertano”. Todas as frases que ele disser terao um som parecido ao som da pregunta escrita acima. Todas as ordens e explicaçoes dadas serao expressadas assim, e normalmente terminarao com “m’entiende?”.
Agora, imaginemos que temos de pedir para o responsável repetir o que acabou de dizer, porque nao conseguimos entendê-lo. Ele repetirá o que disse, mas mais alto, mais rápido, e com palavroes à mistura.
Num contexto social normal, conviver com um (ou uma) huertano(a) pode ser bastante agradável, excepto em dois pormenores: primeiro, a comunicaçao pode ser seriamente danificada se nao há reciprocidade (i.e., se nao entendemos o que o interlocutor diz, mesmo que o repita 50 vezes); segundo, pode surgir um sentimento natural de frustraçao por nao se conseguir aprender esta lengua em concreto, que origina do dialecto da regiao, que se chama “panocho” – isto é verdade.
É fundamental também salientar que, no século XXI, o personagem huertano nao se encontra exclusivamente no seu habitat original: a huerta. Com a modernizaçao de Espanha, o aumento de pessoas a viver nas cidades e novas oportunidades de negócios, um huertano pode ser encontrado em lojas de mobiliario de design, em centros comerciais, em escritorios de contabilidade, em firmas de advogados, em bancos e, muitas vezes até, em postos de funçao pública e governaçao.
E, regra geral, um huertano nao costuma ser um bom patrao: nao porque a sua forma de expressao seja inatingível, mas porque o facto de nao ser comprendido à primeira gera impaciência. Como toda a gente sabe, a impaciência leva à raiva, e a raiva leva ao lado negro da Força...
(continuará num próximo momento de inspiraçao…)
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