Não gosto de pensar que sou mais uma peça da engrenagem. A idade da razão faz-nos pensar assim, cada vez mais, e quanto mais o tempo passa. Todos os momentos entre o acordar e o despertar, fico no limbo a pensar que hoje vai ser o dia em que vou ser mais do que sou, e que vou sair do sistema, para me tornar autónoma, e não um autómato. E, claro, depois disso, recomeço a rotina, e isso passa para a lista de preocupações existenciais, para as quais tenho um espaço reservado na minha mente, aberto das 10.30h às 10.35h e da meia-noite até adormecer.
Gosto de pensar em mim como uma beleza clássica, mas subtil e discreta. As pessoas normalmente não dão pela minha presença até eu abrir a boca. Contudo, não é na minha voz ou naquilo que eu digo que reparam: o que realmente lhes chama a atenção é a marca que eu tenho na minha face esquerda, um risco que vai quase desde a minha orelha até ao fim da bochecha. Tenho o cabelo comprido, de propósito para tentar esconder isso, mas na verdade, já nem sei se tenho muito interesse em fazê-lo. Portanto, por muito que goste de pensar em mim como uma beleza clássica, subtil e discreta, o facto é que, aparentemente, sou anti-clássica por causa dessa cicatriz. Aconteceu um dia, quando eu tinha 14 anos, a andar de bicicleta. Caí mesmo por cima de uma pedra aguçada, num caminho de cabras de uma falésia. Havia sangue e o som do mar. Ainda hoje, quando vejo alguém sangrar, ou quando me corto, tenho a sensação de que o sangue flui como as ondas do mar, e oiço aquele barulho de praia.
Também gosto de pensar que essa marca tão característica que tenho na cara não me define, mas é apenas um pensamento. E se, ao princípio, achei que isso me desfiguraria, enganei-me. Os homens vêm ter comigo à mesma, independentemente da cicatriz. De facto, dou comigo a causar furor em festas e discotecas por causa disso. Os homens pensam que eu sou interessante e acham que o contraste entre uma beleza clássica e aquele corte maligno me torna especial. Não que algum dos homens na minha vida me tenha pedido em casamento, ou tenha procurado muito mais do que saber o que é estar com uma mulher marcada... Mas eu tenho culpa nisso, é verdade. Não acredito que me consiga prender assim tão facilmente. A maior parte dos homens que eu conheço são burros e imaturos. E os que realmente me interessam não estão à procura de um compromisso. Enfim...
Sou assistente na faculdade de Letras e dou aulas de Literatura Comparada. Não consegui o trabalho por ser excepcionalmente dotada em literatura ou escrita, isso admito. Acho que o que aconteceu foi que, um dia, cheguei ao bar da faculdade, ainda no princípio do curso, sentei-me com umas amigas e, ao fim de umas imperiais, comecei a discursar que nem uma louca sobre Literatura Norte-Americana, e um professor ouviu. E deu-se o cliché habitual neste tipo de casos: a aluna envolve-se com o professor, mais velho, casado e pai de filhos. Suponho que ele me queria por perto, independentemente do resultado final da relação, que acabou quando eu estava a terminar o curso. Ainda alimentei a esperança de que ele deixasse a família, mas... não, não alimentei essa esperança. No fundo, acho que também joguei as minhas cartas, a pensar mais no que me convinha, do que naquilo que estava a sentir. Os primeiros tempos foram sinceros, mas depois... Foi ele que me falou na sensação de estar com uma mulher com uma cicatriz na cara, e faço das palavras dele minhas, quando falo sobre isso. Que ter uma relação com um professor de Letras tenha, ao menos, essa mais valia: as suas palavras são mais exactas e belas a descrever coisas que nos assustam ou enojam. E assim, nos dias que correm, partilhamos um gabinete e memórias das quais não nos orgulhamos particularmente. Pelo menos, eu.
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